quinta-feira, dezembro 23

A caminho da Morte




Cecília vivia na Cidade das Sombras, onde tudo era previsto até o dia da morte. Cidade escura, iluminada somente por tochas, habitada por seres vagantes, sem propósito, sem vida. Cecília estava lá por engano, pegou o caminho errado na estrada, quando percebeu tinha entrado num caminho sem volta, onde todas as mazelas humanas se encontravam.

Pessoas sem esperança, invejosas, egoístas, avarentas, mentirosas e sem amor vagavam sem destino entre as vielas e ruas sombrias aguardando a Morte. Enquanto a própria Morte, em uma busca incessante, escolhia o próximo a cada semana. Todos teriam o mesmo fim. A não ser que no encontro final com a “morte”, se arrependessem de tudo que tivera feito, então teriam uma chance de sair da cidade e de viver em paz.

Só que todos padeciam do mesmo mal, o coração era incapaz de sentir bondade, eram seres sem virtudes. E somente Cecília era capaz de se arrepender. Rapidamente os moradores descobriram a existência de Cecília que estava escondida em uma cabana abandonada perto da Floresta dos Horrores.

O boato se espalhou com facilidade nas bocas e ouvidos das fofoqueiras, enquanto as mentirosas inventavam o paradeiro de Cecília, os trapaceiros vendiam informações erradas, as invejosas resolveram entregar o local de esconderijo para a Morte só para saber se realmente Cecília teria coragem de se arrepender de seus atos. Os egoístas foram na frente e ensinaram o caminho da cabana para assim receberem os elogios pela informação.

A Morte ficou entusiasmada em saber que tinha um ser com virtudes na cidade. Estava cansada dos julgamentos óbvios que fazia todas as semanas com seres tão inescrupulosos. Decidiu ligeiramente que o ser desta semana seria Cecília. E com um piscar dos olhos, se apresentou a Cecília que foi pega de surpresa quando acendia a última vela. Assustada, logo percebeu que havia sido escolhida e que passaria por uma provação difícil, pois a morte faria de tudo para que não se arrependesse de suas atitudes e permanecesse na cidade.

A Morte então começou o seu interrogatório, começou com a seguinte pergunta: 

- Quer dizer que você veio parar na minha cidade por engano?  - perguntou a Morte com um ar desconfiado.
-Sim, existiam duas ruas cruzadas e acabei escolhendo a errada. – respondeu Cecília um pouco surpresa com a pergunta.
- Então essa escolha errada não tem nada haver com uma aposta que fez dizendo que provaria o quão fácil seria de burlar as minhas regras? – a morte se aproximou com um sorriso sarcástico.
- Admito que fiz  a aposta e ainda tenho certeza de que conseguirei. – as palavras da boca de Cecília saíram trêmulas.

Os olhos vermelhos da morte brilharam e num rompante fez a próxima pergunta:

- É de se admirar a certeza que tens em sair daqui, acha que te escolhi á toa? Eu já sabia de suas fraquezas. Acha que realmente passou despercebida entre as minhas vielas escuras? Como és ingênua! Sei do seu histórico de menina bondosa, a que ajuda amiga e toma seu namorado. – Cecília embranqueceu - a que espalha sem dó um segredo contado somente a você, a que ri das desgraças alheias, a que ignora sua família por se achar superior e outras traquinagens que fazia antes de ter a brilhante idéia de me afrontar.

Cecília estarrecida e muita nervosa, respondeu: 

- Mas tudo foi feito com boas intenções! Ele era o meu grande amor, o segredo do outro não era tão relevante, as desgraças que vi realmente eram engraçadas e enquanto a minha família, sinceramente, nasci na família errada!
- Aaaahh, brilhante Cecília!! Nem me deste o trabalho, acabou de admitir que não se arrepende de nada que fez quando resolveu justificá-las. Odeio ditados populares, mas concordo que este se encaixa ao momento “de boas intenções o inferno está cheio” e você, minha cara, se mostrou tão igual quanto aquelas criaturas sem virtudes que vagam lá fora. Toda maldade se torna uma boa intenção para quem as comete. 

Cecília se pôs a chorar e lembrou de um livro que misteriosamente apareceu na porta de sua casa uma semana antes da escolha que lhe levou a estar ali. Um livro muito antigo escrito com tinta vermelha (que só na última página foi entender o porquê), folhas amareladas e rasgadas. Ela abriu na única página intacta e leu: “A única saída da Cidade das Trevas é transformar suas atitudes maléficas em virtudes, antes que o líquido da vida seja derramado”. E na última página existia uma marca de mão, feita a sangue, foi quando então percebeu que o livro inteiro havia sido escrito com sangue.

Quando a Morte voltou-se para Cecília, estava com um punhal nas mãos e um cálice. O ritual de passagem seria um pingo de sangue no centro do cálice e tudo estaria perdido.
Então, Cecília indagou:

- Tenho algo a expor. Tudo que eu fiz, eu não me arrependo, mas o fato de não se arrepender, não implica no sentimento que existiu por trás do ato em si. Existiu um sentimento único que foi o “AMOR”, como por exemplo, no momento em que fiquei com o namorado da minha melhor amiga, e hoje ela está muito bem, ele não a amava. E quanto ao segredo, tive a "CORAGEM" que ela não teve, hoje ela assumiu a sua opção sexual perante a família e amigos e é mais respeitada do que antes; e quanto a minha família, servi de exemplo de superação em chegar aonde cheguei, apesar de todas as dificuldades, e o aparente despeito que tive para com eles foi só mais uma oportunidade de "APRENDIZADO" para mim e para eles também. Tudo que fiz foi motivado por uma virtude e, por mais que a princípio tenha tido momentos infelizes de adaptação, o resultado final foi o “BEM”.

Sentiu os olhos abrindo lentamente, uma luz forte, intensa e quente a impediu de enxergar. Aos poucos levantou-se, sentiu a grama entre os seus dedos e quando finalmente conseguiu abrir os olhos. Reconheceu. Era o jardim de sua casa...